sexta-feira, 20 de abril de 2018

A Barrinha de Mira, vista por Raúl Brandão


1 de agosto de 1920
Ao lado do areal onde se finca a povoação de Mira há um resto da ria de Aveiro, que teve aqui noutros tempos uma saída para o mar e que se chama ainda hoje a Barrinha. É uma gota de água pensativa a cinquenta passos do mar. Canaviais e areias... Mas a lagoazinha bebe a luz do céu e parece ainda mais melancólica e pacífica ao lado do grande oceano atormentado. (...)
Alimentam a Barrinha dois veios de água doce da Fervença, que fazem moer alguns moinhos primitivos. Quatro tábuas e o esguicho que sai de troncos de árvores cavados, tão velhos que se babam pelas fendas. Em volta, areia alagadiça que o pescador de Mira transforma campos, à força de mexoalho e de sardinha. Todos trazem a sua terra aforada, e nesta época do ano as mulheres vêm da lavoura para casa guiando à vara o barquinho carregado de milho. (...)
É aqui que se pescam as melhores tainhas, luzidias, negras, de cabeça chata, de uma maneira original e que é talvez a maneira primitiva, anterior à linha, ao anzol e à rede. (...) Apanham-se também na Barrinha magníficas enguias.
Este velho braço, que liga a ria à Barrinha de Mira através da planície humedecida, poça aqui, poça acolá, adelgaçando-se até chegar ao fio, ou alargando-se até se transformar num charco, acaba enfim por desaguar no Arião. A planície, coberta de erva rasteira que as mulheres constantemente rapam para a curtirem nos estrumes, tem um grande encanto de amplidão deserta. As rãs escorregadias saltam sob os pés e as noites, cheias de estrelas, parecem maiores e mais profundas. Meto-me num barco. Deixo-o deslizar ao sabor da água, de mansinho, entre canaviais que irrompem do tapete gordo de chapotas, de um lado doiradas pelo sol, do outro mais verdes ao sopé das canas. (...)
De um lado e do outro o areal cultivado. A cinquenta passos o mar. E aqui ao pé de mim, à tona da água, mil reflexos - luz bebida - luz esquecida - luz parada. E o barco desliza sempre ao sabor da água. Se a vida corresse sempre assim, para o mar eterno, neste sítio ignorado em que não canta uma ave!...

Raúl Brandão, in "Os Pescadores" (1922)

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