O Pálio de Cidadelhe, guardado (cada ano, em segredo) numa das casas da aldeia, data do século XVIII e apenas sai às ruas nas procissões da Páscoa e do Corpo de Deus. Finamente bordado a oiro sobre um valioso pano de cor grená, subsiste como testemunho da alma comunitária e do paradoxo artístico que, no mesmo acto criador, fez nascer a lenda rude dos irmãos agricultores, que cada ano rompiam três enxadas nas encostas de Cidadelhe, e teceu, a filigrana, os símbolos da sua fé.
Na sua obra "Viagem a Portugal", José Saramago descreve-o assim:
"Cidadelhe, calcanhar do mundo. Eis a aldeia, quase na ponta de um bico rochoso entalado entre dois rios. (...)
O pálio é a glória de Cidadelhe. Ir a Cidadelhe e não ver o pálio, seria o mesmo que ir a Roma e não ver o papa. O viajante já foi a Roma, não viu o papa e não se importou com isso. Mas está a importar-se muito em Cidadelhe. (...)
José Saramago e o Pálio, em 2009. |
Quando se aproxima da Ermida de São Sebastião vê, em ar de quem espera, aquelas mesmas idosas mulheres e outras mais novas. "É o pálio", diz Guerra. As mulheres abrem devagar uma caixa, tiram de dentro qualquer coisa envolvida numa toalha branca, e todas juntas, cada qual fazendo seu movimento, como se estivessem executando um ritual, desdobram, e é como se a não acabassem de desdobrar, a grande peça de veludo de carmesim bordada a ouro, a prata e a seda, com o largo motivo central, opulenta cercadura que rodeia a custódia erguida por dois anjos, e ao redor das flores, fios entrelaçados, esferazinhas de estanho, um esplendor que nenhumas palavras podem descrever.
O viajante fica assombrado. Quer ver melhor, põe as mãos na macieza incomparável do veludo, e numa cartela bordada lê uma palavra e uma data: 'Cidadelhe, 1707'. Este é, em verdade, o tesouro que as mulheres de preto ciosamente guardam e defendem, quando já lhes custa guardar e defender a vida.
No regresso à Guarda, caía a noite, disse o viajante: "Então o pálio estava a arranjar". "Não. Quiseram convencer-me primeiro de que o senhor era boa pessoa". O viajante ficou contente por o acharem boa pessoa em Cidadelhe, e nessa noite sonhou com o pálio."
Ler mais:
José Saramago (1985) - Viagem a Portugal - Círculo de Leitores.
http://www.sitexplo.com/roteiro/index.php?obj=front&action=rub_aff&rub_id=71
http://lalineadelhorizonte.com/revista/con-saramago-por-las-aldeas-historicas-de-portugal-iii/